Jesus e Zaqueu: Notas Sobre Espiritualidade do Encontro

Tempo de leitura: 9 min

Escrito por Jotarchangelo
em novembro 3, 2022

Vivemos num mundo excessivamente conturbado, beligerante e conflitivo. A violência campeia em nossas cidades e nos campos. Rixas, brigas e agressões se dão em qualquer lugar, a qualquer momento e por qualquer motivo. Motivos tão banais ou, mesmo, sem nenhum motivo. E tantos seres humanos perecem e aparecem no volumoso quadro de estatísticas das vítimas de violência por motivos fúteis.

O mundo mudou. Hoje são novos tempos. Novas mentalidades e velhos problemas.

O estreitamento de laços de ternura, de confiança, de bem-querer, do prazer de COM-VIVER, ou seja, o estreitamento de laços que geram enlaces amorosos, cúmplices apaixonados, eternos e enamorados, foi substituído pela tela fria de mensagens com palavras e frases entrecortadas, abreviadas e, até mesmo, inexatas.

O estreitamento de laços que geram enlaces de paixão, de ternura, de fé e afeto, foi substituído por laços que prendem, laços que aprisionam, laços que cerceiam a liberdade, laços que sufocam, aviltam e matam. Encontros foram transmutados em meros contatos, em desencontros, confrontos e indiferença. E a dor da alma só cresce. Falta sentido à vida, faltam propósito e ideal, falta amor, falta Encontro. Sobram CONTATOS.

O fundamento essencial da espiritualidade cristã é a experiência concreta de Deus no ENCONTRO Pessoal com Jesus Cristo. E os evangelhos narram diversos encontros de Jesus com os mais diferentes tipos de pessoas e interlocutores. Vamos ressaltar algumas notas no relato do encontro de Jesus com Zaqueu, descrito em Lucas 19, 1-10.

1. Passar do CONTATO ao ENCONTRO (Relação): Muitos tiveram (e ainda têm) contato com Jesus, mas nem todos O encontraram. O contato é superficial, efêmero, pontual e passageiro. O encontro é duradouro, radical e envolvente. É comprometedor. É preciso ter uma experiência viva e vibrante de ENCONTRO pessoal com Jesus.

Como numa grande viagem, temos contato com o motorista do ônibus, ou com a tripulação de uma aeronave, mas, terminada a viagem esses profissionais são esquecidos e já não fazem parte da vida da gente. Assim pode ser o nosso contato com Jesus. Temos um contato assíduo, passageiro e formal (no templo, nos cultos, nas missas), e depois o esquecemos. Nossa vida segue sem a presença de Jesus. Isso é contato, não encontro.

Primeiro ponto a se assinalar: é preciso passar do CONTATO para o ENCONTRO com Jesus. Assim se deu com Zaqueu, assim se deu com Saulo a caminho de Damasco. Assim se deu com tantos discípulos. A vida não foi mais a mesma depois daquele ENCONTRO.

2. A firme decisão de ENCONTRAR Jesus. Zaqueu estava determinado a “ver Jesus” (Lc 19, 3) e mobilizou todas as suas forças para alcançar seu objetivo. Diferente de Herodes que, perplexo, também “queria ver Jesus” (Lc 9, 7 – 9), mas continuou acomodado em seu palácio.

Encontrar-se com Jesus requer um ato de determinação, de vontade, de firme decisão. Em Jesus não há meio termo: diante de sua paixão “[…] Ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém, e enviou mensageiros à sua frente (Lc 9, 51-52). Ainda mais explicitamente, o texto do Apocalipse arremata dizendo que “[…] conheço sua conduta: você não é frio nem quente. Quem dera fosse frio ou quente. Porque é morno, nem frio nem quente, estou para vomitar você de minha boca” (Ap 3,15-16).

Jesus tomou a decisão e partiu para Jerusalém. Zaqueu decidiu ver Jesus e PARTIU PARA A AÇÃO. Já Herodes desejava ver Jesus, mas não saiu de seu palácio. Acomodou-se. Não viu e nem experimentou o Deus único e verdadeiro revelado em Jesus.

Esse é o segundo aspecto a ser assinalado: Decidir (com firmeza) encontrar-se com Jesus e partir para a ação.

3. DESINSTALAR-SE. Herodes não saiu de seu palácio, de seu castelo. Ficou preso em seus bens, em suas ideias, em seus afazeres, em seu restrito mundo. Apegou-se a si e aos seus (amigos, familiares, bens, poderes…). Não se libertou. Não conheceu Jesus, a verdade que liberta (Jo 14,6).

Zaqueu deixou o conforto de sua rica casa e, com dificuldades, enfrentou o acotovelamento da multidão para conseguir “ver Jesus”. Também não se importou com o papel ridículo típico de crianças que sobem e brincam em árvores. Jesus é coerente. Naquela árvore estava a criança a quem tomou como modelo: “Eu lhes garanto: se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, vocês nunca entrarão no Reino do Céu” (Mateus 18,3).

Terceiro ponto a assinalar: Desinstalar-se e buscar Jesus sem a apresentação de currículo, de méritos, de posses, de fama e de poder. Buscar Jesus como crianças, com todos os seus defeitos e qualidades.

4. OLHAR COM OS OLHOS DE JESUS.

Jesus tira todos os rótulos, preconceitos e formas de exclusão e discriminação para ver o essencial. Jesus olhou para o alto da árvore e NÂO viu o “pecador público”, ou o “cobrador de impostos”, ou o “comunista”, ou o “homossexual”, ou o “presidiário”, ou o “migrante”: Jesus olhou e viu, em Zaqueu, um ser humano, um filho de Abraão. “Jesus tinha entrado em Jericó, e esta atravessando a cidade. Havia aí um homem chamado Zaqueu […]” (Lc 19, 1 – 2). Jesus vai além da opinião comum: Onde todos enxergam um pecador, um criminoso, um desonesto, um ladrão, Jesus vê um ser humano, um filho de Abraão, um filho de Deus.

Quarto ponto a assinalar: Olhar com os olhos de Jesus. Sem preconceitos. Sem julgar. O julgamento é prerrogativa exclusiva de Deus.

5. DESCER DEPRESSA.

Zaqueu era um homem muito baixo tanto no sentido físico quanto no sentido moral. Sabia que era odiado e desprezado por todos. E reconhecia seus erros. Essa condição de sua vida (odiado e desprezado) o impulsionava a procurar Jesus. Queria “ver Jesus”. E o surpreendente acontece: Zaqueu queria ver Jesus, mas foi Jesus quem o viu e não ficou indiferente à sua pessoa.

Santo Ambrósio repetia a Santo Agostinho em sua busca pela verdade: “O mais importante não é que encontremos a Verdade, mas que a Verdade nos encontre”.

Eis algumas atitudes interessantes da espiritualidade cristã advindas desse cenário: a) Jesus olha a essência de quem o procura e se desfaz de todo rótulo, preconceito e formas de exclusão; b) Jesus olha e vê primeiro (como o Pai misericordioso da parábola descrita em Lucas 15, 11 – 31); Jesus não é indiferente à dor das pessoas. Olha para o alto, vê Zaqueu e o chama pelo nome. “Quando Jesus chegou ao lugar, olhou para cima e disse: Desça depressa, Zaqueu, porque hoje preciso ficar em sua casa” (Lc 19,5).

Nessa fala de Jesus temos três termos a destacar:

Primeiro: “DESCER”. O encontro com Jesus não se faz no alto de nossa pretensa perfeição, no alto de nossa arrogância e prepotência, mas no nível do chão, na realidade concreta da vida, com os pés empoeirados e calejados no longo caminho;

Segundo: “EU PRECISO”. Jesus se faz necessitado. Nós não o encontramos no valente e prepotente guerreiro (como Golias), na suntuosidade dos palácios e nas seguranças das muralhas e fortalezas, mas O encontramos no Jesus necessitado de acolhida em nossa casa, em nossa alma e em nosso coração.

Terceiro: “CASA”. Não se trata de um mero contato, mas de permanência. Ele Precisa ficar em nossa casa. Entrar em nossa vida. Compartilhar problemas e sonhos.

Quinto ponto a assinalar: descer depressa e procurar Jesus sem a pretensa perfeição do fariseu quando Lucas descreve que dois homens subiram ao templo para orar: “[…] um era fariseu, e o outro era cobrador de impostos. O fariseu, de pé, rezava assim no seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, que são ladrões, desonestos, adúlteros, nem como esse cobrador de impostos. Eu faço jejum duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda’. O cobrador de impostos ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu, mas batia no peito, dizendo: ‘Meu Deus, tem piedade de mim, que sou pecador’. Eu declaro a vocês: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha, será elevado”.

É fundamental procurar Jesus em nossa condição de seres humanos imperfeitos, com nossos próprios limites, os nossos defeitos e trevas interiores. Os “perfeitos” não precisam da Salvação de Jesus.

6. Receber Jesus.

Jesus não pede o arrependimento e a conversão de Zaqueu. Antes, Jesus oferece sua misericórdia e pede que Zaqueu o receba em sua casa. Jesus inverte, mais uma vez, a ordem das coisas: Não é a conversão que gera o perdão dos pecados de Zaqueu, mas é o perdão e a misericórdia de Deus, oferecidos gratuitamente, que geram a conversão tanto de Zaqueu quanto a nossa.

Deus não condiciona sua misericórdia à nossa conversão, mas a nossa conversão é fruto e consequência da misericórdia de Deus.

Receber Jesus em sua misericórdia e em suas necessidades é o sexto ponto a ser assinalado nessas notas sobre a espiritualidade do Encontro com Jesus a partir do relato do episódio de Zaqueu.

7. Onde encontrar Jesus? Em suas andanças, Jesus nunca privilegiou um local específico para seus constantes encontros, desencontros e confrontos. Em Jesus, todo local é sagrado e é passível uma experiência de Encontro com Deus. Pode ser no interior das casas, nas sinagogas, no templo, nas suas longas caminhadas, sentado ao longo do caminho, ao ar livre, no campo e à beira-mar, numa barca ou num monte.

Assim, todo local é sagrado, pois é passível do encontro com Deus. Encontramos Jesus e Jesus nos encontra nas longas caminhadas de nossa existência e a partir de nossas necessidades mais urgentes, de nossas carências mais angustiantes e de nossos desejos mais aflitivos.

Sétimo ponto a anotar: Todo o universo é altar de Deus, é sagrado, é ponte e é fonte de experiência de Deus e de seu Cristo. Não se pode separar o comportamento cristão no templo de seu comportamento nas realidades do mundo da economia, da política, da ecologia e das relações sociais. Todo lugar é lugar sagrado para estar com Ele e provar seu incondicional Amor.

8. Amor, arrependimento, emenda, conversão e salvação.

O amor de Deus não foi ofertado a Zaqueu porque ele se converteu e mudou de vida, mas, ao contrário, Zaqueu só se tornou um homem generoso e mudou de vida depois de seu encontro com Jesus e após ter feito a experiência do amor de Deus. O amor de Deus é incondicional: Ele ama, apesar do pecado, apesar dos limites e defeitos de cada um.

Zaqueu responde a essa oferta de salvação que Deus lhe faz de duas formas: Acolhendo o dom de Deus, e convertendo-se ao amor de forma concreta e objetiva. Assim, Zaqueu ultrapassa os limites e obrigações da lei judaica mediante a partilha dos bens aos pobres e a restituição de tudo o que havia roubado numa proporção de quatro vezes mais. Zaqueu assume os pilares da justificação: o amor e a justiça. É a melhor forma de emenda e arrependimento.

No cenário em que vivemos nos dias de hoje podemos selecionar os seguintes pontos como indicadores de nosso processo de conversão e crescimento na espiritualidade do encontro:

a) O amor de Deus não está condicionado à nossa conversão, mas a nossa conversão é consequência de nossa experiência do amor que Deus nos oferece a todo instante;

b) Manifestamos nossa conversão enquanto seguidores de Jesus quando somos capazes de converter os diferentes (os pobres, os excluídos, os migrantes, os grupos LGBTQI+, os adversários políticos, etc.) em convidados; os estranhos em amigos; nossa indiferença em encontro e acolhimento; os muros que nos isolam e afastam em pontes que nos unem e nos fazem ver a beleza do diferente e dos outros; a hostilidade (a tudo e a todos que se apresentem diferentes de nossa maneira de ser, de agir e de pensar)em hospitalidade; o ódio em amor, o castigo em perdão, e o pecador em irmão.

Nas estradas e caminhos tortuosos e empoeirados da Vida Jesus nos encontra e permite ser encontrado. É caminho de conversão. É encontro com Deus. É vida que se renova e se torna plena de alegria e significado (Jo 10,10).

José Archângelo Depizzol

03/11/2022

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